Pedra Verde

Em maio deste ano, recebi um convite do Boris, para uma conquista em Madalena. A cidade de Santa Maria Madalena fica a 250 km do Rio de janeiro e foi o berço de algumas celebridades como Sidney Magal e a gloriosa Dercy Gonçalves, cuja estátua com os seios à mostra encontra-se em lugar de destaque no pequeno centro urbano. A ideia parecia boa, agendamos uma data e nas semanas seguintes, sempre que esbarrava com o Boris, ele vinha com alguma foto aérea nova,  ou informação. Mas nesta época, por questões pessoais e profissionais, estava sempre com pressa e pouco participei desta fase, confiando inteiramente no instinto do camarada Boris.

Conforme a data chegava, me organizei e consegui fazer o mínimo: arrumar minha mochila, amolar o facão de mato, carregar a bateria da furadeira e organizar o restante do material de conquista.

Em princípio iríamos terminar uma conquista do Marquinhos, mas por algum motivo, na madrugada de saída, nosso amigo começou a urinar vermelho. Nenhum de nós queria acreditar que seríamos impedidos por uma simples tonalidade de urina e desta forma às quatro da manhã, colocava solenemente as malas do Marcos no carro, quando ouço: “ Xuxu! Diz ai… Como médico, e não como amigo, dá pra eu viajar?”. Havia somente uma resposta para essa pergunta tão traiçoeira: “É… como médico, não acho que você deveria ir não… isso são horas de fazer essa pergunta!!”.

Saindo sem o Marcola, tivemos que partir para o plano “B”, algo guardado na manga e estudado até a exaustão pelo amigo russo, e que ele aparentemente tinha tão pronto, que me fez pensar se aquele sangue no vaso viera realmente ao acaso.

O foco então se voltou para a Pedra Verde, montanha imponente com seus 1430m metros de altitude e aparentemente nunca escalada. Tínhamos toda raça de mapa topográfico e rodoviário da região, e seguindo suas indicações adentramos sem erros a área mais próxima à base da parede. Paramos o carro em uma fazenda localizada no vale, logo abaixo da montanha. O lugar era paradisíaco, o céu e os cumes encontravam-se escondidos por nuvens. Tínhamos parado ao lado de um rio e nessa hora resolvi dar uma pequena busca nas proximidades. Passei por trilhas e uma represa que acabou por me levar a um pasto e, em seguida, a um chiqueiro, um galinheiro e uma casa. A casa era grande e localizada num lugar privilegiado de onde se tinha visão de todo o vale e da montanha. Na frente havia uma mulher varrendo o chão, do seu lado, sentado em uma escada e tomando café, estava quem imaginei ser seu marido. Fui puxar assunto, explicando o que estava fazendo ali, e enquanto tentava ser o mais claro possível, percebi o quanto era absurdo pra eles aceitar com naturalidade aquela história toda…  Seus nomes eram Flavinho e Luzia, perguntei então se poderia acampar na fazenda. Após o consentimento, partimos para a parede.

Iniciamos a caminhada, mochilas pesadas e facão na mão; aproveitamos as áreas de pasto para nos aproximar o máximo possível da pedra. Sempre com ela bem visível, procurávamos a face de acesso mais simples ao cume e finalmente, no fim dos pastos, precisamos seguir com o uso do facão. Dessa forma, após três horas abrindo mata fechada, estávamos na base da parede. Dali a parede parecia generosa, cheia de platôs, buracos e o cume logo ali… A fome de pedra era tanta que o primeiro grampo foi batido 50 metros acima da base, com o Boris me dando segurança sentado em uma bromélia. Mais tarde bateríamos mais dois grampos abaixo deste.

Seguimos então num estilo de conquista que permaneceu em todas as investidas. O guia saía da parada com furadeira, água, anorak, marreta, punho, 12 grampos e 12 costuras. Os grampos foram batidos em sua maioria aproveitando os acidentes da rocha, de pé sobre buracos ou aproveitando a aderência da parede.

No primeiro dia havíamos achado a base, aberto a trilha e subido 70 metros de parede. Voltávamos para o carro satisfeitos e agora procuraríamos um lugar para descansar e voltar à parede no dia seguinte.

Voltando ao carro, e sem contar com a luz do dia, procurávamos um lugar para passar a noite. Enquanto Boris e Rafaela armavam sua barraca, eu tomava banho no rio e lembrava que não havia levado nada além de saco de dormir e isolante térmico e, naquele frio, não me parecia muito agradável. Foi nesse momento, nu dentro de um rio, que recebi a melhor de todas as notícias. Aquele cara grandão, que tinha encontrado mais cedo, nos chamava para sua casa.

Custei a acreditar, mas fomos recebidos com um café quente, e no meio de muitas perguntas sobre o que tínhamos visto na montanha, nos ofereceu um quarto com três camas e chuveiro quente para que ficássemos à vontade. Naquele feriado de Tiradentes, fizemos mais uma investida avançando mais 120 metros.

Com toda aquela moleza não precisávamos acordar tão cedo e assim que levantamos, fomos recebidos com leite de vaca recém tirado e aquele café, talvez o mais doce que já tomei.

O último dia, tiramos exclusivamente para conhecer a fazenda. Fomos no curral pela manhã, na hora do leite, e assim fomos conhecendo o casal, suas filhas Anabelle e Isabela e os vizinhos e parentes que vinham de todo lugar para ajudar no cuidado com o gado e tomar aquele café. Eram muitos, Baiano, Jacaré, Peçanha… Todos faziam questão de ajudar e contavam inúmeras histórias onde, de alguma forma, Flavinho os havia ajudado. Percebemos então que tínhamos sem querer, entrado nas terras do cara mais gente boa daquela região.

Saímos de lá com data marcada para a volta, após um passeio guiado por nosso anfitrião que perdeu o almoço de Páscoa para nos levar em uma cachoeira da região. Voltamos mais três vezes até a conclusão da via, sempre sendo recebidos da mesma forma: quarto, banho quente, muita conversa e café. Aos poucos, já íamos reconhecendo as pessoas pelo caminho.

A via dava a impressão constante de proximidade do cume, o que se revelou uma ilusão.

Na segunda investida recebemos o reforço do Ivan, o que ajudou na logística, principalmente para divisão de peso e a possibilidade de carregar cordas para deixar na parede.

Ivan e Boris começaram conquistando, desta vez, mantendo o estilo tradicional de escalada. Chovia e trovejava na região, mas na Pedra Verde, nada. Chegamos a parar, para esperar a chuva cair, mas só vento, enquanto a água caia a alguns quilômetros dali… No dia seguinte voltamos, e passamos pelo trecho mais difícil da via, aparentemente um sétimo grau em aderência.

Na terceira investida, saímos do Rio, certos de que chegaríamos ao cume. Tão certos que fomos direto para outra pedra, iniciando outra conquista na região, deixando a Pedra Verde para o dia seguinte.

Na manhã seguinte, de volta ao objetivo principal, subimos pelas cordas fixas com o jumar, e retomamos a empreitada do ponto anterior. Porém, mesmo não aparentando, a pedra mostrava-se bem mais complicada do que o esperado e, no final do dia, alcançamos um platô de mato, mas bem longe do cume. Na tentativa de continuar no dia seguinte, pensávamos em dormir naquele platô, se é que pode ser chamado assim.

Avistamos o por do sol e conversamos, a medida que escurecia e ia esfriando. Pouco a pouco colocamos todo nosso arsenal de agasalhos. Não havia saco de dormir e, às nove da noite, enrolamos as cordas nas pernas e fizemos nosso jantar – sanduiche de atum; não haveria mais nada para comer depois disso.

O termômetro marcava oito graus e o vento vinha diretamente. Tentava me distrair olhando as estrelas, mas em pouco tempo começamos a procurar alguma desculpa que justificasse uma descida honrosa. Trinta minutos depois, e com várias desculpas, descemos.

Até então, íamos com certa regularidade a Madalena, em geral três semanas. Mas desta vez, três meses se passaram até que conseguíssemos uma nova data. Retornamos então: Boris, Ivan e eu. Concluímos que a melhor estratégia seria mesmo dormir na parede. O objetivo era o cume e, para isso, cada um tinha uma função: Boris, mais familiarizado com o jumar, subiria os trechos encordados; eu trataria de guiar o mais rápido possível e o Ivan cuidaria da motivação da subida, trazendo de seu restaurante quiches e maravilhas culinárias esmagadas no fundo da mochila.

Pensando na noite que viria e no bivac, carregamos três litros d’água, agasalhos, saco de dormir e comida extra, todo esse peso lentificou a subida; chegamos ao platô de mato, já no final da tarde. Não poderia imaginar ficar naquele platô de novo, e sem pensar em muita coisa, e aproveitando os últimos raios de sol, parti com tudo que tinha em direção ao cume.

Pedi para o Ivan me avisar quando chegasse o meio da corda e bati um grampo. Trinta metros acima, quando a corda acabou, gritei para os dois subirem junto comigo. Seguimos assim pelos próximos 150 metros, sempre batendo um grampo a cada 20/30 metros, tocando por um costão de 2°/3° grau cada vez mais fácil, até que avistei uma árvore. Não me contive, e com o dia quase escuro, adentrei o mato e comecei a abrir uma trilha na aresta, em direção ao cume. A vegetação era densa e conforme subia, procurava o lugar ideal para passar a noite. Finalmente, após nos reunirmos, optamos por dormir sob uma árvore, e chegar ao cume no dia seguinte. A via estava concluída!

Preparamos nosso acampamento, guardamos o material de escalada e jantamos. A quiche estava maravilhosa, embora seu sabor até hoje permaneça um mistério. Durante a noite o tempo mudou, e pela manhã tudo estava branco. Levamos mais 30 minutos até o cume.

O caminho é uma aresta com precipícios dos dois lados. Comemoramos nossa chegada e esperamos, por uma hora, que o tempo abrisse. Não abriu e descemos, desarmando o acampamento. Começávamos assim o rapel. Descemos lentamente, curtindo a via que tínhamos terminado, fazendo o croqui bem detalhado e retirando as cordas fixas da parede. Regressávamos ao carro, levando de presente ao Flavinho uma de nossas cordas para que usasse de arreio ou para amarrar as canelinhas das vacas.

Na manhã anterior, ao chegar, a casa estava vazia e ao chegar no curral encontramos a Luzia, que nos deu a notícia de que o Flavinho não estava. Nas últimas semanas, um sobrinho seu havia morrido de leucemia e naqueles dias seu pai havia sido internado em estado grave devido à apendicite e ele o acompanhava, provavelmente voltaria naquele dia. Avisamos que dormiríamos na pedra, e ela nos disse que deixaria a casa aberta para quando voltássemos.

No domingo, quando voltamos, não havia ninguém na casa e nem no curral. Tomamos banho e deixamos umas sacolas de roupas, a corda e um bilhete agradecendo por tudo.

Voltando pra casa, depois de 56 grampos batidos, 4 investidas, 7 dias de escalada, 1 bivac e 600 metros de escalada. Ainda não tínhamos um nome para a via, já cruzávamos a ponte Rio – Niterói quando decidimos: “Gente boa!” Em homenagem ao nosso amigo Flavinho. E ficou assim: Gente Boa 5° VIIa E3 D4 600metros.

Carlos Arruzzo (Xuxu)

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